Shame (2011)


Segunda-feira é dia de acordar cedo, tomar um desjejum e logo partir para o trabalho. Ao final de cerca de nove horas, já é possível retornar à casa para se preparar para a vinda de terça-feira. Somos doutrinados a cumprir metas e prazos durante cinco dos sete dias semanais, no entanto as preocupações do emprego permeiam nossos pensamentos frequentemente durante mais tempo. A manutenção dessa disciplina se deve muito às chícaras de café cordialmente oferecidas no escritório e à educação dos apresentadores do telejornal noturno. "Boa noite, e até amanhã". 

É possível até dialogar mentalmente com eles. "Esperei ontem pelo amanhã e o hoje foi idêntico ao ontem. As horas que passam são as mesmas que foram. Reciclei o tempo. E o reciclo desde quando me lembro. Certamente suas notícias são outras, embora similares. No entanto, minha vida são círculos. Existência e rotina".

Alguns chegam a uma conclusão. "Me resta a esperança de um novo amanhã, amanhã não-ontem. Sei a impossibilidade do fato, mas sonhar melhora a situação. O sonho se vincula ao sono, e esse acelera o tempo. Aproxima o futuro do presente, o fim do agora. Talvez seja a mais adequada alternativa: investir no dormir. Para findar a rotina. E também os dias, para que o amanhã seja algo diferente do hoje-ontem. Simplesmente não exista".

A temática do longa "Shame", do novato porém talentosíssimo cineasta britânico Steve McQueen, vai muito além do que o resumido em qualquer sinopse. De fato, o filme acompanha alguns dias da vida de Brandon, um executivo de Nova Iorque obsessivo por sexo. Mas o diretor sagazmente associa essa compulsão como sendo uma consequencia dos valores contemporâneos vigentes. A discussão se torna infinitamente mais interessante.

Abri essa resenha com trechos de um texto de minha autoria, o qual acredito ilustrar a mesma crítica proposta pelo filme. Vivemos na era da rotina. A rotina traz frustrações, e a partir delas cada um de nós encontra uma válvula de escape. Brandon escolheu uma exacerbada sexualidade, e é retratado como refém de seus próprios desejos libidinosos em diversas passagens da trama. Praticante assíduo do sexo casual, não atende a telefonemas de mulheres com quem já dividiu a cama. E aquelas que já deitaram ao seu lado recebem olhares convidativos, seja no trabalho, no meio da rua, ou até mesmo no vagão de metrô. Michael Fassbender incorpora o personagem de forma brilhante e digna de aplausos. Ele sem dúvidas é um dos melhores atores da atualidade.

Há ainda a irmã de Brandon, Sissy, uma personagem bem comum nessa nossa época. Imediatista, ela vive o agora e não quer saber de construir algo, apenas de diversão. Quando seu relacionamento com o namorado desmorona de vez, corre para os braços do irmão, a única pessoa que tem no mundo. "Nós só temos um ao outro, Brandon". Ela se instala no sofá do apartamento do irmão e, logicamente, perturba toda a rotina de um solteirão e sua libido pronunciada. Cenas fortes de dramaticidade e tensão resultarão dessa convivência. A personagem de Sissy poderia vir a ser um excesso do roteiro, mas Steve McQueen conseguiu solucionar esse problema explorando a personagem o mínimo possível, fugindo do vício de criar na tela um dramalhão. Isso é facilmente perceptível no final do filme, com cenas interessantíssimas capazes de chocar.

"Shame" definitivamente não é um filme sobre sexualidade. Ela é apenas a consequencia do verdadeiro elemento central em crítica: o vazio existencial contemporâneo. O ótimo trabalho de direção nos faz ter pena de Brandon, que diariamente precisa ver pornografia no computador do escritório, masturbar-se no banheiro do trabalho, fazer sexo virtual em seu apartamento, entre outros. Destaco também a cena "fundo do poço", quando ele, impedido de entrar numa boate que queria, acaba recorrendo a uma outra, com um outro perfil. Nessa hora, é consolidado o desespero do personagem.

Em suma, Steve McQueen é uma das maiores promessas do cinema atual. Ele criou aqui um filme com roteiro fantasticamente trabalhado, sem excessos, e capaz de chocar sem ser piegas, apelativo ou pretencioso. A crítica social presente é também bastante válida e importante em nossa época. Certamente o mundo tem centenas de milhares de Brandons e Sissys, e chega a hora de pensarmos que não vivemos num período imutável da história. Enxergar a inversão de valores da sociedade é o primeiro passo para solucionar esse problema. Saramago é mais sintético e profundo: "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara".



Nota: 7,5


Comentários

Postagens mais visitadas