Cidade das Mulheres (1980)

Marcello Mastroianni
       Snàporaz (Marcello Mastroianni) é um homem de meia idade que, ao fazer uma viagem de trem, acaba por mergulhar num universo onírico no qual a discussão do conceito masculino do feminino irá reinar absoluta. Nesse que é o último filme de Federico Fellini vemos novamente Marcello Mastroianni como a figura do alter ego do diretor, além de uma série de outros elementos característicos da filmografia felliniana. O humor característico do mestre italiano já aparece nos créditos iniciais, com uma voz de mulher dizendo de maneira risonha: “Ainda o Marcello?”. O desenvolvimento da trilha sonora de Luis Bacalov imprime desde esse início da película o tom simpático e fantasioso sobre o qual a história será construída.
     Ao acordar em sua cabine do trem, Snàporaz vê em sua frente uma mulher capaz de atraí-lo e fasciná-lo após o primeiro olhar por ele desferido. “Superbumbum”. Como consequência, foi natural que ele a seguisse da cabine para o banheiro, e lá mesmo tentasse a seduzir. A chegada do trem na estação logo interrompeu tal momento, e a figura feminina desce do vagão caminhando em direção a uma mata, deixando o cinquentão sozinho com seus desejos libidinosos. Atordoado, ele a segue floresta adentro, e acaba por chegar no Grand Hotel Miramare, sede de um congresso feminista. Se o trem representa o elo entre a realidade e os devaneios da mente de Snàporaz, o seu adentrar no saguão do hotel sinaliza a total imersão do personagem num mundo fantástico.

A Dança, de Henri Matisse
 
      A cena no lobby é típica de Fellini, sendo constituída de um verdadeiro mise-en-scène reforçado pela apurada técnica de profundidade de campo do diretor. Um detalhe interessante nesse ponto é que há no saguão pôsteres de “A Dança”, de Henri Matisse. A pintura fauvista apresenta pinceladas vigorosas, falta de nuances e uso estridente e não naturalista das cores. Se transpusermos essas características para a arte de Fellini, será fácil perceber o quão interessante foi a sua designação de seu filme como uma obra quase fauvista: as “pinceladas vigorosas” seriam a tempestade de informações, a “falta de nuances” seria a velocidade com que os elementos aparecem e o “uso estridente e não naturalista das cores”, a capacidade inventiva surpreendente e exagerada do diretor.
        Snàporaz circula pelo interior do hotel e a priori se depara com feministas estereotipadas – radicalíssimas (“Matrimônio, manicômio!”), agressivas e até mesmo lésbicas. Elas defendem a autossuficiência feminina e o repúdio à sociedade patriarcal (preste atenção na mulher que se disse inspirada na história da branca de neve e os sete anões). Em cada aposento, o personagem se depara com distintos eventos da causa feminina. Alguns chocantes, outros hilários. Mas quando ele finalmente escapa do hotel, outros tipos de mulher aparecem – a figura da “tarada”, as jovens rebeldes e drogadas. Até esse ponto do filme a audiência feminina poderá suspeitar que o cineasta possui uma visão extremamente machista em relação às mulheres. Os acontecimentos seguintes vão desmentir essa ideia.
     Com relação ao resto do filme, não vale a pena se aprofundar em sua análise a fim de preservar o seu efeito surpresa intrínseco. Apenas ressaltarei três dentre outros elementos merecedores de maior atenção: 1) a mulher como mãe está sempre numa espécie de altar ou patamar superior; 2) as memórias de amores passados ganham homenagem nas duas melhores cenas do filme, a da sala de quadros e a do tobogã iluminado; 3) a figura platônica da mulher ideal, embora aproximada em certa cena, tem caráter inatingível (reforçado por tiros). 




       Cidade das Mulheres é um filme precioso sobre a figura do feminino e seus mistérios e sua magia na mente masculina. Ele discute eficientemente questões como o machismo e a subordinação dos sexos, o papel da mãe para o homem, o fascínio à figura feminina, o amor ideal, a crise da meia idade, entre outras. Embora se desenvolva como uma visão masculina do feminino, não encontramos machismo nem feminismo, mas uma alternância capaz de surpreender. Como muitos outros filmes de Fellini, este é um espetáculo onírico com luxuriantes cenários, capazes de hipnotizar a qualquer um de maneira inexplicável. Semelhante a uma fábula recheada de críticas, questionamentos e bom-humor nunca ausente. A lição de moral fica por conta do espectador.

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