Lars von Trier: Dogville



       Possivelmente o mais famoso e original filme do cineasta, Dogville (2003) é um marco do cinema contemporâneo por ter representado uma nova forma de filmar. Elementos do Dogma 95 são encontrados em algumas horas, porém de forma escassa (Trier, embora co-criador do manifesto, não o utiliza em suas obras). O mais presente é a filmagem com câmera de ombro, o que confere maior realismo no resultado final.
         A imagem acima por si só explica o que de mais inovador há em Dogville: o filme foi feito num galpão escuro com uma cidadezinha desenhada com giz no chão. Apenas objetos de cena foram inseridos. Paredes, casas e até elementos da natureza como um arbusto e um lago foram representados indiretamente. Por muitos chamado de teatro filmado, esse estilo consegue extrair a carga dramática máxima dos atores. E de fato é isso o que acontece com a atuação de Nicole Kidman, realmente excepcional e seguramente seu trabalho de maior destaque na atuação.
        Quanto à fotografia, embora se passe num galpão escuro, o filme também surpreende positivamente. Mesmo sem nenhum referencial externo conseguimos perceber o ciclo dia-noite pela iluminação da cidade, um trabalho muito apurado de jogo de luzes. Em pontos de clímax do filme há também a alteração da luminosidade para tons mais avermelhados, sugerindo emoções fortes em cena. O resultado realmente é muito impressionante.
         Como se não fosse originalidade o suficiente, há também um distinto modo de edição - na verdade não é algo que apenas Lars von Trier tenha utilizado - com a divisão da história em capítulos. Stanley Kubrick já utilizou tal recurso em seu filme Barry Lyndon (1975). Trier edita dessa forma todos seus filmes pós Dogville. Particularmente me agrada esse estilo pelo fato de organizar a história de modo a evidenciar ao expectador o foco de discussão dos vários momentos do filme.

 

        Após revisitar o aspecto técnico do filme, vejamos agora a história. Lembro que meus textos não fornecem os tão indesejáveis spoilers, ou seja, não revelo nenhum segredo da trama dos filmes que resenho. Dogville é uma minúscula cidade dos Estados Unidos que possui um punhado de habitantes os quais aparentemente vivem alheios ao mundo que os cerca (as trevas ao redor da cidade evidenciam isso no filme). Vivem de forma organizada, com cada um possuindo sua função para a manutenção do coletivo. Cada um possui pequenos defeitos característicos, assim como qualquer ser humano.
         Os habitantes vivem nessa normalidade mórbida até que tiros são ouvidos e uma muito bem vestida mulher (certamente não é surpresa que se trata de Kidman) aparece, dizendo que está fugindo de gângsters e pedindo proteção. Aí as coisas começam, e é aqui que eu paro para não estragar a experiência cinematográfica dos leitores. A princípio há uma certa discussão entre os moradores sobre aceitar ou não ajudar a misteriosa mulher. Por fim aceitam abrigá-la por duas semanas apenas. E chega de sinopse.
      Quem tiver a curiosidade de ver o filme perceberá que ele é um claro ensaio sobre a arrogância humana. A (des)evolução dos personagens acontece de forma tão natural e paulatina a ponto de nos chocar. Como anteriormente dito, Nicole Kidman dá uma verdadeira aula de como ser uma boa atriz. O roteiro é muito bem amarrado e possui alguns diálogos profundos tanto em beleza quanto em conteúdo.
         Apenas faço um alerta: há aqueles que não suportam filmes lentos. Há outros que não suportam filmes longos. Sou um admirador explícito dos filmes lentos, até porque a maioria de suas histórias jamais seriam bem contadas em ritmo hollywoodiano frenético. Os 178 minutos de Dogville têm sua razão de existir. É o tempo necessário para que as contínuas desconstruções de personagens sejam convincentes e harmoniosas. 
         Mas também criticando um pouco, não me agradou muito as tomadas de câmera do filme bem como alguns capítulos por demais arrastados e talvez pouco importantes. A ausência de trilha sonora contribui para a criação de momentos maçantes, porém suportáveis. É um filme difícil de assistir, porém recompensador. Não é uma obra-prima, mas mistura erros e acertos de forma a se tornar importante para a nossa formação cultural e regular como produção.
         Certamente alguns não vão gostar do filme, mas mesmo que seja frustrante a diversidade de opiniões sobre o filme é fantástico o efeito dos gostos pessoais somados, pois eles são matéria-prima para grandes feitos artísticos. E se o meu objetivo for atingido após sua leitura estarei muito satisfeito: veja o filme e compartilhe suas ideias. É muito válido. Mais do que gastar esses 178 minutos em um ócio não produtivo.

NOTA: 7,0.
        

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